quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A MULHER QUE LÊ


A mulher que lê é uma pintura de Matisse. A primeira coisa que faz antes de sair de casa: agarra com doçura aquele livro que consumiu pela metade antes de pôr o pezinho no mundo dos sonhos e flanar entre as doces memórias da saudade que pululam durante o sono. A mulher que lê pensa, reflete, elabora, sente o amor chegar mais rápido do que Usain Bolt e sabe dizer, sem pestanejar, a distância entre exata o Tadjquistão e Cabul e se o homem presta. Dirige seu carro ouvindo os LPs e CDs dos anos 80 no seu mp3 interno e consegue decifrar as mensagens dos néons da madrugada, pois já leu, alhures, que a noite revela mistérios encobertos pela capacidade solar que o ser humano tem de ocultar (se).
A mulher que lê vê além e, assim, vê duplamente. Ama o Flamengo, o clube, muito mais que o time. A mulher que lê não se satisfaz com historinhas água-com-açúcar e, não raro, acha que água com cicuta também vale, dependendo do protagonista. Acredita no diploma sem sair de casa, mas não dispensa a turma da faculdade. Sabe o que lhe vai pelas canaletas da memória e sorri o melhor dente quando se vê numa saia justa. A mulher que lê coloca, com naturalidade, na conversa olho no olho, aquela palavra da moda, mas revestida de um charme pessoal que só sua voz em fá sustenido é capaz de tocar. Diz o que pensa, com todas as letras. Põe os pingos nos ii, mas resiste à eliminação do trema. Instila a dúvida de que a mulher mais interessante do território nacional é a locutora global Renata Vasconcellos quando me conta o que se passou no final de semana, com detalhes que só ela viu, e sorri com os olhos semicerrados, coagulando imagens que ninguém poderia supor.
A mulher que lê degusta o Prosa & Verso todos os sábados de manhã, entre um gole e outro de Perrier. Sabe o livro certo para saudade da amiga que brigou com o namorado e ligou tarde da noite perguntando "O que faço agora?". Vê o mundo com a nitidez de um Blu-Ray. Reflete. Para. Elabora. Abre-se diante da vida da mesma forma que os sentimentos se abrem diante de si mesma como abismos escuros, nos quais se cai sem saber quando encontrará o fundo. A mulher que lê tem horas preferidas para o livro: de manhã, bem cedinho, ao entardecer e na madrugada. Nunca à tarde. O livro é para momentos especiais do dia – não convém, por algum motivo velado, buscá-lo enquanto as ruidosas engrenagens da cidade se põem em movimento. A mulher que lê vai além das páginas. Tudo passa a ser razão e sentimento para a leitura: mãos, gestos, olhares, silêncios. Seu duplo olhar é, em si, um convite às palavras, que brotam de seus lábios quando ela chega e diz a que veio.
A mulher que lê permanece atenta aos deslo(u)camentos da paixão, inversões e sustos que, no fim, definem a arte da sedução e seus tentáculos perturbadores. Tem a estrutura dramática de uma ária de Bach e causa espanto a todos em volta por estar sempre disponível para a dissonância e o arrebatamento, enquanto os outros se perdem em cruéis certezas movediças. A mulher que lê anda de braço dado com Fernando Pessoa, recebe cartas de Gabriel Garcia Márquez, toma chope com Vinicius de madrugada, estuda inglês com Shakespeare, passeia no parque com Drummond e tira dúvidas de gramática e de vida com Manuel Bandeira. A mulher que lê é toda prosa, mas pode também ser a personificação da poesia, aquela mulher que a gente vê pelo menos uma vez na vida e tem a certeza de que todos os poemas de todos os tempos foram endereçados a ela. Conhece o universo de sutilezas que se esconde por trás do silêncio dos gatos e já percebeu há muito tempo que a noosfera é muito mais do que uma nuvem de pensamentos interligados. Seu prisma filosófico reflete Heidegger e Sartre, Lacan e Nietzsche, Adorno e Schopenhauer. Desejo e frustração moram, apaixonados, na mulher que lê.
Eu encontrei a mulher que lê dias atrás, e ela me foi sincera no pedido. Que eu a deixasse em paz, que não mais a observasse flanando nas livrarias, nos sebos do centro da cidade, maravilhada diante de uma banca de onde borbotam revistas. Não mais versos sussurrados no ouvido. Não mais tardes inteiras na Bienal. Não mais intolerância com homens cujas idéias cabem num Twitter. Queria passar despercebida, uma simples mulher ciente da sua complexidade. Mais uma entre tantas que zanzam pelos longos corredores das bibliotecas ou as que se aquietam na solidão da madrugada, diante do computador ou do livro, com uma xícara de chá ao lado. Lamento, não posso atender ao seu desejo. Está além do meu controle. A mulher que lê é tão importante para mim que, exatamente por ser discreta, com a palavra certa precisa ser descrita: perfeita.
Fernando 090904

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